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O Candomblé no Brasil
O Candomblé no Brasil

Foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.

                                                         

Mas teria sido aquele terreiro o único com essas características no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Esses documentos eram produzidos por indivíduos que, em geral, não eram iniciados no candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e que o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as informações que apresentam são quase sempre incompletas, distorcidas ou simplesmente equivocadas. Apesar disso, elas revelam muito das práticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX.

Durante esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia O Alabama, periódico “crítico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés baianos, o jornal publicava, com considerável freqüência, histórias de pessoas envolvidas nesses rituais.

Os que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente – ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e organizacional, calendário de festas, e assim por diante. Eram também os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo sacrifício votivos de animais. Com freqüência, adivinhos e curandeiros atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da África.

Nomes como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de março de 1807, conforme foi registrado com precisão, no final do século XIX, em um Resumo cronológico e noticioso da província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de Nicácia fora feito porque ela “tão falada foi por muito tempo, e da qual inda hoje se referem fatos interessantes.” Infelizmente ele não relata esses “fatos.” Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes quando fora seguida por uma multidão até cidade, presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o Conde da Ponte. Esse governador desencadeou uma vigorosa campanha repressiva contra candomblés e quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos. Mas a perseguição aos cultos afros aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia.

Amaro, um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro 1855 em incursão policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era suspeito de ser “o grande sacerdote dos africanos” no distrito da Sé, populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi encontrada a maioria dos “vários objetos de [...] crenças” africanas confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos foram assim descritos pelo subdelegado: “figuras, símbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas”. Nessa mesma ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no Brasil) Francisco Antonio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório policial porque “com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos escravos para danças e batuques com ofensa à moral pública”. Nem Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de rebeldia.

A maioria dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É possível ir um pouco mais longe à tentativa de determinar a origem deles. Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século XIX vieram principalmente de povos do grupo lingüístico gbe, localizados, sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas no final do século os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.

Embora candomblé seja um vocábulo de origem banta (família lingüística dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc., trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX baiano. Mas temos algumas expressões  como candonga e milonga para designar feitiçaria, e calundu, para definir a prática religiosa africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse universo religioso.

O papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à Rua Coqueiros d’Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com “danças e objetos de feitiçaria”, dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Foram presas dezesseis pessoas. Que o português estivesse envolvido naquela experiência religiosa parece provável, mas é possível que a batuta ritual estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana presa com o grupo.

Nenhuma dúvida foi deixada pela polícia no caso da outra pessoa branca em nossa lista de líderes. Maria Couto foi abertamente acusada de ser “dona ou diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo – batendo tambor e dançando para os deuses – por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos fugidos freqüentava aquelas cerimônias, o que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença – sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher branca.

Alguns escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como “presidente do terreiro dos candomblés”. Observe-se que aqui também aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Um bem-sucedido sacerdote adivinho e curandeiro, Antônio vivia longe de sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu terreiro. Ali, o escravo era procurado por “número maior [de pessoas] de alguns Engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e Domingos”. Segundo um relatório policial, ele exigia, “apesar de ser moço, que lhe tomassem a benção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos”. De início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícia enviadas para capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Seis escravos foram presos para informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.

Para ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor.  Era o caso de Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos por que. É possível que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidava com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à Inquisição.

Uma expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou, principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do escravo ao trabalho remunerado − como carregadores, vendedores, operários e artesãos −, que permitia a formação da poupança amiúde usada para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementaram formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.

Negociantes, quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, individualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, jóias, além de um baú de roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação, Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho dessa história.  Mas decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o escândalo.

Era comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais positiva de generosidade, proteção e, sobretudo eficiência ritual. Esta última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período colonial, devotos e clientes de diversas camadas sociais.

Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo, seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram freqüentes. Eles foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como dois “marris”, dois “jejes”, um “dagomé” e um “tapá” (termo iorubá que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).

Apesar de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter havido na África entre algumas dos grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo lingüístico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.

Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidos no Brasil deviam ser exclusivamente católicas.

Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, “adoravam” deuses africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser devotas dos santos católicos. Era como se à mistura étnica de fato equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessariamente misturá-los.

Na segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no candomblé.  Com o correr dos anos, observa-se um processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda continuava predominantemente africana.

Em 1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um subdelegado escreveu que “neste distrito nunca os crioulos se deram a tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração de todos”. Essa mesma autoridade vangloriou-se de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam – escreveu – “um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na lavoura”. O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22 crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro “pardas escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; dentre os homens, apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta que eram, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhadores. Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro, um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. As ocupações das mulheres não foram listadas.

A composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se considerar o perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pajová não era exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória declarou que ali os “filhos da terra” já tinham substituído os africanos nos “batuques de tabaques”. Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo menos, até a virada do século. E o apelo à pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés, desde essa época.

Entre os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se nos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional. Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e madames, policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos, políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo do ano.

Típico neste caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa na ladeira de Santa Tereza, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como “pessoas de gravata e lavadas”, participavam de cerimônias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de Onim (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna Maria, mãe de terreiro angola denunciada por O Alabama em 1864, constava uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios, um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moça”, provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.

Se for lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, é também correto dizer que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma forma de espiritualidade apenas africana, nem era uma religião exclusiva de escravos.

A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua  mistura étnica, racial e, logo, social.  Um processo que ocorreu em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto – talvez pela maior parte da população e decerto pela maioria da elite – como anticristão ou incivilizado e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade policiais.

Durante todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que, embora essa religião tenha se difundido na sociedade, enquanto existiram africanos na Bahia, provavelmente existiram candomblés apenas de africanos, e mesmo entre estes alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da identidade étnica – pois continuam até hoje a se definir, de acordo com sua “nação”, como nagô, ketu, jeje, angola –, tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a todo vapor nas vésperas da abolição da escravidão, em 1888.

O sincretismo do Candomblé, na verdade, tem sua origem na própria África, onde existiu, na época da colonização, e antes, e atualmente, uma enorme diversidade de povos e culturas interagentes. O panteão africano reúne mais de 400 divindades.

No Candomblé, forjado em terras brasileiras, esse panteão, atualmente, é composto de 16 orixás [ou Òrìsà, em ioruba] principais, numa significativa condensação das forças metafísicas que levou mais de um século para se definir no processo de integração das diferentes nações cujos representantes chegaram ao Brasil durante o período da escravidão. Não obstante, "correndo por fora", contam-se ainda, outros 14 orixás reconhecidos em diferentes centros de culto. Entre as nações que contribuíram na formação do panteão principal relacionam-se: os bantu, nativos de Angola, Moçambique, Congo; Gana, Benin, Nigéria [Ioruba ou Nagôs]; Sudaneses, da Costa do Marfim, os Ewe, muitos muçulmanos; os Fon e os Ashanti. Todos esses, falando línguas diferentes e cultuando seus próprios deuses.

Liturgia do Candomblé

Apesar das contradições do candomblé, especialmente no que se refere ao número dos Orixás, a teologia não é complicada: um Deus criador de todas as coisas e deuses menores regentes da Natureza, da personalidade e da vida dos homens. Entretanto, a liturgia, ou seja, as práticas rituais, de iniciação, cultos e, sobretudo o oráculo, esta liturgia é extremamente complexa.

O Candomblé não é uma religião "caseira". Um católico, depois de ser catequizado, depois de aprender princípios básicos, pode se sentir perfeitamente livre [apesar das admoestações do vaticano] para dispensar a freqüência às missas, pode rezar o Terço em casa, até acompanhando pela televisão [Rede Vida]. Um muçulmano também: estende seu tapete cinco vezes ao dia para orar voltado para Meca em qualquer lugar. O budista segue o caminho do meio, medita sobre as oito verdades do Buda Sakyamuni e tudo está bem. Os evangélicos, não obstante a insistência dos pastores para que freqüentem a igreja, uma vez que tomam consciência da força da fé em Deus-Jesus Cristo, pode igualmente dar um tempo das reuniões. É verdade que judeus e hinduístas são mais cobrados em suas obrigações religiosas porém nada que se compare à rígida disciplina exigida dos adeptos do Candomblé.

No Candomblé não existe autodidata nem auto-iniciação. Para ser um Filho [a] de Santo, um longo tempo de iniciação é indispensável e se o interessado em Candomblé pretende se utilizar do oráculo africano, o Jogo de Búzios, foco de interesse de muita gente, a religião se mostra ainda mais inacessível. Apesar dos inúmeros oráculos online [softwares, programas] disponíveis na internet; apesar, ainda, de existir até um Tarô do Búzios ou Tarô dos Orixás [Tarô dos Orixás: Senhores do Destino Editora Palas], inovações recentes, o oráculo afro-brasileiro, o Jogo de Búzios [Ifá], somente é confiável quando "operado" pelas mãos credenciadas dos sacerdotes, o Babalorixá [Pai ou Zelador de Santo] ou Yalorixá [Mãe ou Zeladora de Santo]. Este é um ponto indiscutível entre os especialistas.

Em 1830, algumas mulheres negras originárias de Ketu, na Nigéria, e pertencentes a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, reuniram-se para estabelecer uma forma de culto que preservasse as tradições africanas aqui, no Brasil.Segundo documentos históricos da época, esta reunião aconteceu na antiga Ladeira do Bercô; hoje, Rua Visconde de Itaparica, próximo a Igreja da Barroquinha na cidade de São Salvador – Estado da Bahia.

Desta reunião, que era formada por várias mulheres, como foi relatado anteriormente, uma mulher ajudada por Baba-Asiká, um ilustre africano da época, se destacou:

– Íyànàssó Kalá ou Oká, cujo o òrúnkó no orixá era Íyàmagbó-Olódùmarè.

Mas, o motivo principal desta reunião era estabelecer um culto africanista no Brasil, pois viram essas mulheres, que se alguma coisa não fosse feita aos seus irmãos negros e descendentes, nada teriam para preservar o “culto de orixá”, já que os negros que aqui chegavam eram batizados na Igreja Católica e obrigados a praticarem assim a religião católica.

Porém, como praticar um culto de origem tribal, numa terra distante de sua ìyá ìlú àiyé èmí, ou a mãe pátria terra da vida, como era chamada a África, pelos antigos africanos?

Primeiro, tentaram fazer uma fusão de várias mitologias, dogmas e liturgias africanas. Este culto, no Brasil, teria que ser similar ao culto praticado na África, em que o principal quesito para se ingressar em seus mistérios seria a iniciação. Enquanto na África a iniciação é feita muitas vezes em plena floresta, no Brasil foi estabelecida uma mini-África, ou seja, a casa de culto teria todos os orixás africanos juntos. Ao contrário da África, onde cada orixá está ligado a uma aldeia, ou cidade; por exemplo: Xangô em Oyó, Oxum em Ijexá e Ijebu e assim por diante.

Mas, por que esse culto foi denominado de Candomblé?

Este culto da forma como é aqui praticado e chamado de Candomblé, não existe na África. O que existe lá é o que se chama de culto ao orixá, ou seja, cada região africana cultua um orixá e só inicia elegun ou pessoa daquele orixá. Portanto, a palavra Candomblé foi uma forma de denominar as reuniões feitas pelos escravos, para cultuar seus deuses, porque também era comum chamar de Candomblé toda festa ou reunião de negros no Brasil. Por esse motivo, antigos Babalorixás e Yalorixás evitavam chamar o “culto dos orixás” de Candomblé. Eles não queriam com isso serem confundidos com estas festas. Mas, com o passar do tempo a palavra Candomblé foi aceita e passou a definir um conjunto de cultos vindo de diversas regiões africanas.

A palavra Candomblé possui dois significados entre os pesquisadores: Candomblé seria uma modificação fonética de “Candonbé”, um tipo de atabaque usado pelos negros de Angola; ou ainda, viria de “Candonbidé”, que quer dizer “ato de louvar, pedir por alguém ou por alguma coisa”.

Como forma complementar de culto, a palavra Candomblé passou a definir o modelo de cada tribo ou região africana, conforme a seguir:

  • Candomblé da Nação Ketu
  • Candomblé da Nação Jeje
  • Candomblé da Nação Angola
  • Candomblé da Nação Congo
  • Candomblé da Nação Muxicongo

A palavra “Nação” entra aí não para definir uma nação política, pois Nação Jeje não existia em termos políticos. O que é chamado de Nação Jeje é o Candomblé formado pelos povos vindos da região do Dahomé e formado pelos povos Mahin.

Os grupos que falavam a língua yorubá entre eles os de Oyó, Abeokutá, Ijexá, Ebá e Benin vieram constituir uma forma de culto denominada de Candomblé da Nação Ketu. Ketu era uma cidade igual as demais, mas no Brasil passou a designar o culto de Candomblé da Nação Ketu ou Alaketu.

Esses yorubás, quando guerrearam com os povos Jejes e perderam a batalha, se tornaram escravos desses povos, sendo posteriormente vendidos ao Brasil. Quando os yorubás chegaram naquela região sofridos e maltratados, foram chamados pelos fons de ànagô, que quer dizer na língua fon, “piolhentos, sujos” entre outras coisas. A palavra com o tempo se modificou e ficou nàgó e passou a ser aceita pelos povos yorubás no Brasil, para definir as suas origens e uma forma de culto. Na verdade, não existe nenhuma nação política denominada nagô.

No Brasil, a palavra nàgó passou a denominar os Candomblés também de Xamba da região norte, mais conhecido como Xangô do Nordeste.

Os Candomblés da Bahia e do Rio de Janeiro passaram a ser chamados de Nação Ketu com raízes yorubás. Porém, existem variações de Nações, por exemplo, Candomblé da Nação Efan e Candomblé da Nação Ijexá. Efan é uma cidade da região de Ijexá próxima a Osobô e ao rio Oxum. Ijexá não é uma nação política. Ijexá é o nome dado às pessoas que nascem ou vivem na região de Ilexá. O que caracteriza a Nação Ijexá no Brasil é a posição que desfruta Oxum como a rainha dessa nação.

Da mesma forma como existe uma variação no Ketu, há também no Jeje, como por exemplo, Jeje Mahin. Mahin era uma tribo que existia próximo à cidade de Ketu.

Os Candomblés da Nação Angola e Congo foram desenvolvidos no Brasil com a chegada desses africanos vindos de Angola e Congo. A partir de Maria Neném e depois os Candomblés de Mansu Bunduquemqué do falecido Bernardino Bate-folha e Bam Dan Guaíne muitas formas surgiram seguindo tradições de cidades como Casanje, Munjolo, Cabinda, Muxicongo e outras.

Nesse estudo sobre Nações de Candomblé, poderia relatar sobre outras formas de Candomblé, como por exemplo, Nagô-vodun que é uma fusão de costumes yorubás e Jeje, e o Alaketu de sua atual dirigente Olga de Alaketu. O Alaketu não é uma nação específica, mas sim uma Nação yorubá com a origem na mesma região de Ketu, cuja história no Brasil soma-se mais de 350 (trezentos e cinqüenta) anos ao tempo dos ancestrais da casa: Otampé, Ojaró e Odé Akobí.

A verdade é que o culto nigeriano de orixá, chamado de Candomblé no Brasil, foi organizado por mulheres para mulheres. Antigamente, nas primeiras casas de Candomblé, os homens não entravam na roda de dança para os orixás. Mesmo os que se tornavam Babalorixás tinham uma conduta diferente quanto a roda de dança. Desta forma, a participação dos homens era puramente circunstancial. Daí ter-se que se inserir no culto vários cargos para homens, como por exemplo, os cargos de ogans.

Hoje, a palavra Candomblé define no Brasil o que chamamos de culto afro-brasileiro, ou seja: “Uma Cultura Africana em Solo Brasileiro”.

 

Ilê Axé Iya Nassô Oká / Terreiro da Casa Branca
No período da escravidão no Brasil, os negros formavam suas comunidades nos engenhos de cana. Na Bahia, princesas, na condição de escravas, vindas de Oyó e Keto , fundaram um centro num engenho de cana. Depois se agruparam na Barroquinha em Salvador, onde fundaram uma comunidade de Nagô , que segundo historiadores, remonta mais ou menos 300 anos de existência. Sabe-se que esta comunidade fora fundada por três negras africanas cujos nomes são: Adetá ou Iya Detá, Iya Kalá e Iya Nassô . Não se tem certeza de quem plantou o Axé, porém o Engenho Velho se chama Ilé Iya Nassô Oká . O Ilé Iya Nassô funcionava numa Roça na Barroquinha, dentro do perímetro urbano de Salvador. Os africanos que se encontravam ali, lugar deserto naquela época, porém próximo ao Palácio de sua Real Majestade tiveram receio da intervenção das autoridades no seu Culto, daí, Iya Nassô resolveu arrendar terras do Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo, no trecho chamado Joaquim dos Couros, lugar onde se encontra até hoje, estabelecendo aí o primeiro Terreiro de Culto Africano na Bahia.

Mas, o motivo principal desta reunião era estabelecer um culto africanista no Brasil, pois viram essas mulheres, que se alguma coisa não fosse feita aos seus irmãos negros e descendentes, nada teriam para preservar o “culto de orixá”, já que os negros que aqui chegavam eram batizados na Igreja Católica e obrigados a praticarem assim a religião católica.

Este culto, no Brasil, teria que ser similar ao culto praticado na África, em que o principal quesito para se ingressar em seus mistérios seria a iniciação. Enquanto na África a iniciação é feita muitas vezes em plena floresta, no Brasil foi estabelecida uma mini-África, ou seja, a casa de culto teria todos os orixás africanos juntos. Ao contrário da África, onde cada orixá está ligado a uma aldeia, ou cidade; por exemplo: Xangô em Oyó, Oxum em Ijexá e assim por diante.

Outras casas têm referência histórica na Bahia a exemplo de: Terreiro do Gantois e oIlê Axé Opó Afonjá, este último fundado por Mãe Eugênia Anna dos Santos, em 1910, ambos intimamente vinculados ao Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. Além destes, existem outros entre os quais, Zoogodô Bogum Malê Rundó (Terreiro do Bogum). Bate Folha, na Mata Escura.

 

Terreiro da Casa Branca

                          

 

Ilê Axé Opó Afonjá

                                  

 

Terreiro do Gantois

   

 

Terreiro Bate Folha

               

 

Zoogodô Bogum Malê Rundó - Terreiro do Bogum